domingo, 29 de março de 2015

Timisoara, um errinho adorável?


Quem pensa em Europa, pensa em quê? Se você respondeu "Timisoara, uma pequena cidade no interior da Romênia", então provavelmente você é um dos doze brasileiros que já devem ter visitado essa vibrante e badalada terra (que tem uma só praça em funcionamento e oito restaurantes abertos, que eu tenha visto) ao decorrer de toda a história da humanidade.

O legal de Timisoara é que não dá pra chegar lá nem por acidente, nem que você esteja muito perdido, caminhando a esmo durante anos, nem que você feche os olhos e pegue qualquer voo aleatório no aeroporto de Madri, de tão remota a sua localização no nosso planeta. Você precisa querer muito chegar lá. Precisa pedir de coração pra estrelinha mais mágica do céu, chorar e dizer "por favor, por favor, por favor, me leve para Timisoara na Romênia". Só assim você será atendido.

Não foi exatamente assim a história de como eu cheguei na Romênia, mas posso afirmar que foi algo bem parecido.

Ok, vou contar. Meu irmão e eu queríamos muito fazer um roteiro cheio de lugares incomuns, inusitados, inexplorados, todos esses adjetivos cheios de "ins", só pra fazer currículo mesmo. Já havíamos decidido por Hungria, Áustria, Eslováquia, todos esses países super amados e reconhecidos, e Espanha, só pra não enlouquecer e morrer de fome no processo.

Mas faltava alguma coisa, ou melhor, ainda sobravam alguns dias de viagem pra preencher. Então, com muita calma, serenidade e concentração, analisamos o mapa da Europa Oriental para ver quais as opções elegíveis e mais próximas de Budapeste que podíamos dar uma chance e visitar.

Nesse momento de indecisão, demos de cara com a Romênia. Não foi uma coisa muito difícil ou uma coincidência muito grande, já que eu não sei se vocês nunca notaram, mas a Romênia é, assim, muito grande. Grande para padrões europeus, de qualquer forma, pois só no meu estado aqui do Amazonas  cabem os territórios inteiros de Portugal à Alemanha, facim, facim.

Romênia, devemos ter pensado ao mesmo tempo. O que vem na sua cabeça ao pensar na Romênia? Lua cheia, filmes de terror, Conde Drácula, Pensilvânia. Pensilvânia não, Transilvânia. A terra dos vampiros. Que destino legal. É pra lá que eu vou.

Assim, começamos a pesquisar todas as maneiras que podíamos chegar em algum lugar que fizesse ao menos "parte" da Transilvânia, que é realmente o nome da região central do país. Descobrimos Brasov, uma cidadezinha vizinha do estonteante Castelo de Bran, conhecido também como Castelo de Drácula, devido à obra de Bram Stoker, que alimentou o mito de que lá um dia residiu o Príncipe Vlad Tepes, governador da Válaquia, "O Empalador". Cara super gente fina.

Castelo de Bran, fonte: Google

Porém, mas, entretanto, todas as formas de locomoção para chegar lá seriam impraticáveis e muito caras. Voos só saindo de Bucareste, do outro lado do país, trens teco-teco de mais de 9 horas e... se quiser, dá também pra pegar um carro e sair dirigindo na simpática noite romena, cheia de lobos uivando, morcegos morcegando, entre outros sons ululantes que podem ser encontrados na floresta.

Não que os barulhos assustadores e paralisantes fossem um problema e o terror psicológico me abalasse de qualquer forma, mas imagina ter que ler PLACAS em romeno? Eu podia parar na Ucrânia, com sorte na área do cessar-fogo.

Uma curiosidade sobre o romeno aqui em parênteses (metafóricos): ele é bem parecido com o português, já que as duas línguas possuem como raiz comum o latim, a única diferença mesmo são (todas) as palavras. E o que eu sabia de romeno quando eu cheguei lá, pra me ajudar? Só aquela parte da música original romena que o Latino copiou do "Maia hi, Maia hu, Maia ho, Maia ha ha". E acabou que isso nem era romeno mesmo, como depois descobri. Era uma espécie de "Tchetchererê Tchetchê" que não significava porcaria nenhuma, tava lá só pra preencher espaço e fazer lavagem cerebral nas massas.

Pois é, eu estava ferrada. Nunca tinha viajado pra um país antes sem ao menos aprender como falar coisas importantes, como "Não, obrigado", "Sim, por favor" e "Onde fica o banheiro?".

Mas estávamos decididos pela Romênia. Ela havia nos encantado virtualmente com seus castelos decadentes, paisagens belíssimas e arquitetura austera ao estilo soviético.  

E foi assim, meus amigos, que eu cheguei em Timisoara, numa manhã singular de sol, após um voo que poderia muito bem ter inspirado a canção "Se a canoa não virar", quase revirando permanentemente os olhos pra dentro do cérebro por causa de um menino de 3 anos senegalês vestido de smoking.


Sim. Tive uma sorte tremenda nessa viagem de sempre conseguir sentar perto de criaturas cuti-cuti que choraram em alguns momentos dos voos, compreensivelmente por causa de seus frágeis ouvidos.

Esse guri foi a exceção.

Ele não chorou na hora da decolagem. Ele berrou. O voo inteiro. De duas horas e meia. Sem parar. Só de birra.

Eu olhava para os lados e sentia que todos pareciam ter adentrado um estado mental profundo e inatingível, em outro plano espiritual, tamanha era a dor compartilhada por nós passageiros e tripulação. A mãe? Só gritava com ele, às vezes até mais alto, em um dialeto gutural que não fazia nada para apaziguar o xamã que havia baixado no garoto.

Olhando para trás, acho que o momento que eu deveria ter desconfiado do que nos aguardava deveria ter sido naquele aeroporto mesmo, quando a moça também super simpática da imigração analisou por 5 minutos o nosso passaporte e perguntou sem rodeios, numa voz grossa: "O que vocês estão fazendo aqui?"

Olhando mais pra trás, acho também que essa foi a pergunta que mais escutamos a viagem inteira. Não consigo entender o porquê.

Já no hotel, deixamos nossas malas e resolvemos começar a explorar com o nosso mapinha maroto. Na Internet, já tinha pesquisado com dificuldade algumas imagens realmente impressionantes da segunda (ou terceira ou quarta) cidade mais populosa da Romênia, dependendo da fonte.

Demos de cara com isso aqui:


A cidade inteira estava em estado perpétuo de obras. Parecia que eu tinha aterrissado no Brasil em período de Copa, de novo. Na verdade, o que parecia mesmo era que eu tinha aterrissado em 1945 e que a Segunda Guerra tivesse sido semana passada.

Mas o que não estava em obras era muito bonito, dava pra perceber o potencial. Por exemplo, o point da cidade, a Piata Victoria:


Aqui era onde ficava a maior concentração de restaurantes da cidade inteira: um Mc Donald's, um FKC, um Segafredo e um empreendimento local, o incrivelmente badalado Lloyd's, onde os velhinhos da alta sociedade iam dançar ciranda à noite e que vivia tão constantemente "reservado" que tivemos que comer lá fora, no frio. Pelo menos a comida era muito boa e o leu é uma moeda barada.


Outro espetáculo que presenciamos na praça foi o Show dos Pombos de Timisoara, que é grátis e está em cartaz todos os dias, a cada sete minutos.

Funciona assim: nessa praça, têm muitos pombos, o que é um eufemismo para "eu nunca vi tantos pombos na vida quanto nesse lugar". Tem criancinhas que os perseguem, velhinhos que os alimentam, a coisa toda. É uma calmaria só, cena de filme. Mas a cada sete minutos, o pombo chefe deve gritar pros seus companheiros: "EI, RAPAZIADA, BORA DAR UM ROLÉ", e TODOS eles levantam voo ao mesmo tempo e começam a fazer uma panorâmica pelo jardim, literalmente dando uma voltinha até ficarem satisfeitos e pousarem no mesmo lugar como se nada tivesse acontecido.

É meio assustador, but again, estamos na Romênia.

Aqui vocês podem entender mais ou menos como essa bizarrice acontece:



Era uma visão, toda vez. Ah, minha querida Timisoara, que se pronuncia Timixoara, como toda palavra com S em romeno. Ah, Timisoara, com todas as suas excentricidades e particularidades, prédios à la mistérios do Scooby Doo, ruas escuras e sorvete gostoso, fico feliz em ter te conhecido.

Pode não ter sido a melhor escolha do mundo, e sim, pode ser que tenhamos nos perguntado frequentemente de quem foi mesmo a ideia de ir pra lá, mas não me arrependo de um instante.

Talvez meu irmão se arrependa da vez que ele entrou na jacuzzi "para mulheres" do hotel porque ele não leu a placa, mas eu? Mesmo tendo passado um dia a mais que o devido, mesmo conhecendo hoje a cidade como a palma da minha mão, que é muito pequena, por sinal, eu, euzinha, eu mesma posso afirmar com a mais pura verdade que... é, amo muito Timisoara, essa pequena cidade no interior da Romênia, que me encantou não apesar de todos os seus defeitos, mas por causa de cada um deles.

E se um dia eu planejo retornar? Não sei. Mas vai que os pombos sentem minha falta.


terça-feira, 24 de março de 2015

VOCÊ ESTÁ AQUI


Nos últimos dias, tenho acordado às 7 em ponto, agitada e com resquícios de uma tosse confusa, que não sabe se quer gripar ou só fazer escândalo, como pequenos garotos do Sudão do Sul vestidos de smoking num voo para o interior da Romênia. Estou aqui, ela parece dizer, e quero meu xarope.

Sou complacente, ou melhor, refém, assim como me senti naqueles 5 minutos de pânico em outro avião: "Será que são... ou não são?" e atendo seus comandos. Dou xarope, tomo água, engulo a tal da Vitamina C e tento pegar no sono novamente quando percebo que ela ficou distraída. Impossível.

Não acordo às 7 por causa da garganta, embora a chata incomode bastante, não é isso.

É que dizem que o fuso horário do nosso organismo leva um dia para se reacostumar a cada hora perdida ou ganhada em viagens longínquas, e eu tenho mais ou menos 5 ou 6 horas na frente de Manaus que já me fazem acordar com desejo de almoçar qualquer coisa à la Carbonara.

Fato é, acordo às 7 porque acho que já são meio dia e sinto que daqui a pouco minha mãe vai voltar a ficar desapontada com meus hábitos (mais três dias e eu volto ao normal, nada que é bom dura pra sempre). Só assim mesmo para enganar o meu cérebro. Mas ainda tô de férias antes da faculdade, então tudo legal. Por enquanto.

Explicações e tossidas à parte, sinto ter gerado mais perguntas do que respondido nesses últimos (todos) parágrafos. Isso porque eu ainda nem comecei a falar do Burger King. Ou dos pombos. Ou das doze lapadas que aquela mulher levou na bunda, feliz.

Viagem faz isso com a gente. Cria milhões de histórias que nunca fariam sentido sem ser vividas ou descritas nos mínimos detalhes, ou que nunca aconteceriam caso nós nunca tivéssemos partido.

Ou aconteceriam e nós nunca teríamos percebido?

Alguém sábio disse, uma vez, que as pessoas viajam para observar, em fascinação, o tipo de pessoas que elas normalmente ignoram em casa.

Envergonhadamente, admito que esse pensamento me assombrou por boa parte da viagem, toda vez que acreditava estar vivenciando uma cena única, uma emoção e um estado de espírito singular, interagindo com alguém genuinamente especial naquele lugar novo. Havia em mim um sentimento de culpa incômodo, por raramente me sentir tão estupidamente feliz assim em situações normais. Seriam eles especiais ou estaria eu atenta? Qual a explicação? Era como se o mundo inteiro estivesse sussurrando "Estamos aqui" e eu finalmente pudesse sussurrar de volta "E eu também", no meio da multidão.

Estivemos aqui
Fiz paz com essa ideia um pouco tarde demais, talvez exatamente na hora certa, no aeroporto de Lisboa, uma hora antes de embarcar para casa.

Já é bem conhecido o meu encantamento pelos longos corredores desse aeroporto, que é o meu preferido no mundo inteiro, por ser ao mesmo tempo tão longe e tão perto da pátria e por ser uma porta de entrada para essa terrinha tão própria, tão ela mesma, tão parecida e tão diferente, que chega a ser uma segunda pátria, uma casa longe de casa, talvez, um dia, uma casa por si só.

"Quando chegares, não te esqueças de onde partiste", o aeroporto me aconselhou antes de embarcar de volta.

Hoje, após mastigar por muito tempo esse chiclete na minha cabeça, percebo que o cartaz não só significava que, quando em Portugal, não deveria esquecer da minha casa no Brasil. Ele também queria dizer que, quando em Manaus, não deveria jamais esquecer de como me senti em Lisboa.

Ou seja, guardar com carinho todos os lugares que já passei e que já passaram por mim. Já era verdade mesmo durante a viagem, percebi: quando em Viena, de jeito nenhum conseguiria esquecer minha experiência em Budapeste, quando em Timisoara, aprendi a apreciar as diferenças entre o leste e o oeste, ou quando na capital gelada e ventosa da Eslováquia... francamente, só conseguia lembrar de todos esses lugares e pensar o quanto gostaria estar lá em qualquer um deles em vez de perdida no frio. Mas como a Elsa de Frozen bradaria em notas perfeitas no nosso querido português portuga: "Já passou, já passou."

Enfim, deixei de me sentir culpada momentaneamente por sentir e absorver ao máximo tudo de estrangeiro ao meu redor. Espanha, Romênia, Hungria, Áustria, Eslováquia, um pé atrás do outro, uma fronteira por vez. Percebi que não existem terras estrangeiras, e sim viajantes estrangeiros, e que a lição não era sobre o lugar, e sim sobre mim.

Sobre entender que ser viajante é isso, é assinar um contrato em que se aceita viver com a alma espalhada por aí, cheia de pedacinhos se soltando a cada novo destino, e que tudo bem viver com essas faltas, embora não seja uma escolha sem seus sacrifícios. 

Mas tudo vale a pena nesses breves momentos no longo filme da vida em que os espaços vazios se preenchem e transbordam de plenitude não só a cada retorno, como a cada despedida, quando o mundo todo parece dizer "Você está aqui. O caminho também é um lugar." e você, finalmente, está satisfeita.