terça-feira, 24 de março de 2015

VOCÊ ESTÁ AQUI


Nos últimos dias, tenho acordado às 7 em ponto, agitada e com resquícios de uma tosse confusa, que não sabe se quer gripar ou só fazer escândalo, como pequenos garotos do Sudão do Sul vestidos de smoking num voo para o interior da Romênia. Estou aqui, ela parece dizer, e quero meu xarope.

Sou complacente, ou melhor, refém, assim como me senti naqueles 5 minutos de pânico em outro avião: "Será que são... ou não são?" e atendo seus comandos. Dou xarope, tomo água, engulo a tal da Vitamina C e tento pegar no sono novamente quando percebo que ela ficou distraída. Impossível.

Não acordo às 7 por causa da garganta, embora a chata incomode bastante, não é isso.

É que dizem que o fuso horário do nosso organismo leva um dia para se reacostumar a cada hora perdida ou ganhada em viagens longínquas, e eu tenho mais ou menos 5 ou 6 horas na frente de Manaus que já me fazem acordar com desejo de almoçar qualquer coisa à la Carbonara.

Fato é, acordo às 7 porque acho que já são meio dia e sinto que daqui a pouco minha mãe vai voltar a ficar desapontada com meus hábitos (mais três dias e eu volto ao normal, nada que é bom dura pra sempre). Só assim mesmo para enganar o meu cérebro. Mas ainda tô de férias antes da faculdade, então tudo legal. Por enquanto.

Explicações e tossidas à parte, sinto ter gerado mais perguntas do que respondido nesses últimos (todos) parágrafos. Isso porque eu ainda nem comecei a falar do Burger King. Ou dos pombos. Ou das doze lapadas que aquela mulher levou na bunda, feliz.

Viagem faz isso com a gente. Cria milhões de histórias que nunca fariam sentido sem ser vividas ou descritas nos mínimos detalhes, ou que nunca aconteceriam caso nós nunca tivéssemos partido.

Ou aconteceriam e nós nunca teríamos percebido?

Alguém sábio disse, uma vez, que as pessoas viajam para observar, em fascinação, o tipo de pessoas que elas normalmente ignoram em casa.

Envergonhadamente, admito que esse pensamento me assombrou por boa parte da viagem, toda vez que acreditava estar vivenciando uma cena única, uma emoção e um estado de espírito singular, interagindo com alguém genuinamente especial naquele lugar novo. Havia em mim um sentimento de culpa incômodo, por raramente me sentir tão estupidamente feliz assim em situações normais. Seriam eles especiais ou estaria eu atenta? Qual a explicação? Era como se o mundo inteiro estivesse sussurrando "Estamos aqui" e eu finalmente pudesse sussurrar de volta "E eu também", no meio da multidão.

Estivemos aqui
Fiz paz com essa ideia um pouco tarde demais, talvez exatamente na hora certa, no aeroporto de Lisboa, uma hora antes de embarcar para casa.

Já é bem conhecido o meu encantamento pelos longos corredores desse aeroporto, que é o meu preferido no mundo inteiro, por ser ao mesmo tempo tão longe e tão perto da pátria e por ser uma porta de entrada para essa terrinha tão própria, tão ela mesma, tão parecida e tão diferente, que chega a ser uma segunda pátria, uma casa longe de casa, talvez, um dia, uma casa por si só.

"Quando chegares, não te esqueças de onde partiste", o aeroporto me aconselhou antes de embarcar de volta.

Hoje, após mastigar por muito tempo esse chiclete na minha cabeça, percebo que o cartaz não só significava que, quando em Portugal, não deveria esquecer da minha casa no Brasil. Ele também queria dizer que, quando em Manaus, não deveria jamais esquecer de como me senti em Lisboa.

Ou seja, guardar com carinho todos os lugares que já passei e que já passaram por mim. Já era verdade mesmo durante a viagem, percebi: quando em Viena, de jeito nenhum conseguiria esquecer minha experiência em Budapeste, quando em Timisoara, aprendi a apreciar as diferenças entre o leste e o oeste, ou quando na capital gelada e ventosa da Eslováquia... francamente, só conseguia lembrar de todos esses lugares e pensar o quanto gostaria estar lá em qualquer um deles em vez de perdida no frio. Mas como a Elsa de Frozen bradaria em notas perfeitas no nosso querido português portuga: "Já passou, já passou."

Enfim, deixei de me sentir culpada momentaneamente por sentir e absorver ao máximo tudo de estrangeiro ao meu redor. Espanha, Romênia, Hungria, Áustria, Eslováquia, um pé atrás do outro, uma fronteira por vez. Percebi que não existem terras estrangeiras, e sim viajantes estrangeiros, e que a lição não era sobre o lugar, e sim sobre mim.

Sobre entender que ser viajante é isso, é assinar um contrato em que se aceita viver com a alma espalhada por aí, cheia de pedacinhos se soltando a cada novo destino, e que tudo bem viver com essas faltas, embora não seja uma escolha sem seus sacrifícios. 

Mas tudo vale a pena nesses breves momentos no longo filme da vida em que os espaços vazios se preenchem e transbordam de plenitude não só a cada retorno, como a cada despedida, quando o mundo todo parece dizer "Você está aqui. O caminho também é um lugar." e você, finalmente, está satisfeita. 



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