terça-feira, 16 de junho de 2015

A jornada para Budapeste


Depois de três dias perdidos no lugar onde Drácula perdeu a capa, nossa viagem para a Hungria não poderia ter sido mais anticlimática. Demos adeus à pacata Timisoara e seus pombos atletas, e seguimos adiante rumo ao desconhecido e desbravado interior do leste europeu.

Apesar de não colocar muita fé no nosso meio de transporte - um trem que parecia ter saído direto do túnel do tempo, lá de 1914 - o cenário era realmente de guerra. Conforme nos aproximávamos da fronteira com a Hungria, as cidades iam ficando cada vez mais desertas, as estações iam perdendo os tetos, os trilhos, as placas, e na linha do horizonte tudo que se podia avistar era mais e mais da maravilhosa paisagem seca e morta do cerrado.

Uma beleza. Não queria nem falar nada, pra não dar azar, já que tudo isso estava acontecendo do meu lado do trem e o meu irmão estava ali, tão tranquilo, tão absorto em sonhos com o sorvete do Segafredo. Não precisava preocupar ninguém, uma hora a vista iria melhorar. Né?

A vista

Não. O que aconteceu, na verdade, minutos depois, foi a coisa mais assustadora que eu já tinha visto na vida, e essa nem o meu irmão não pôde ignorar. 

Imaginem assim: nos filmes, especialmente nos desenhos do Papa-Léguas, existe aquela linha dos trilhos do trem, por onde eles passam em altíssima velocidade, certo?. Pois é, em uma linha concorrente a esse negócio, existe uma estrada para carros normais, e a única coisa que pode impedir que um carro seja esmagado acidentalmente por um trem andarilho é... (rufem os tambores) um semáforo. Um super, poderosíssimo, grandioso, destemido... semáforo. 

Eu sempre achei que isso fosse coisa de filme mesmo, não que eu ache que as pessoas não devam respeitar o semáforo em um mundo civilizado, mas é que ninguém deveria, em hipótese alguma, ter que confiar num bendito semáforo do século XIX pra avaliar a hora que elas podem atravessar uma encruzilhada sem morrer.

De fato, ou a pessoa confiou, ou ela não respeitou, porque da janela do meu lado do trem pude ver um carro passar por nós, do nada, completamente destroçado, capotado, esmagado, na direção oposta dos trilhos.

Eu não conseguia acreditar nos meus olhos, já que aquela cena tinha surgido sem qualquer explicação, sumindo tão rápido quanto apareceu, quebrando a paisagem amarela que eu já estava há horas acostumada. Todo o nosso vagão entrou em pânico, já que pela posição que o carro havia parado, ele deveria ter sido atingido pelo trem logo na nossa frente.

Não tinha como ninguém ter sobrevivido. Do lado do meu irmão, de repente surgiram diversas vans, ambulâncias, carros de polícia, todos os repórteres da Romênia, todo mundo tentando entender o que havia acontecido. E o nosso trem passando.

E o nosso trem passou.

Até hoje não sei o que aconteceu: quantas pessoas haviam no carro, onde foi parar o trem atingido e qual era o seu destino final, o que os passageiros desse trem estavam pensando, se o maquinista se sentia de alguma forma culpado, se o motorista estava bêbado, se ele sabia que o pior podia acontecer e ainda assim resolveu acelerar... Não sei, não sei de nada.

Lembro de ter tirado os fones, sem clima para ouvir qualquer outra coisa, e ter contemplado a viagem naquele momento.

Quem se aventura até os confins da Romênia quando existem países muito mais aceitáveis para se visitar não é o seu turista comum, de guia de viagens e cartões portais. Ele não procura entretenimento, não procura maquiagem; procura liberdade.

A liberdade, assim como todas as outras conquistas, tem um preço. Não significa poder ir aonde quiser ir e ser quem você quiser ser, não é o conceito romantizado de correr descalço num campo de centeio, imparável, invencível, imortalizado.

Ao invés disso, ter liberdade significa aceitar que a Realidade Do Mundo vai lhe acompanhar aonde quer que você for, e que cada decisão sua ocasiona consequências, e que essas consequências são irradiadas em cadeia e afetam pessoas ao seu redor, em São Paulo, na China, e que você, numa escala cósmica, é tudo, menos invencível, imparável, imortal. Na verdade, você é muito pequeno. Muito miudinho. Metade de um grão de areia. E o pior: você sabe disso.

Ser livre é ver o trem chegando pelo retrovisor do carro e acelerar. O trem pode bater ou não, você pode morrer ou não, mas o fato de que você fez a escolha é que faz a diferença.

Liberdade é um conceito assustador.

Se eu tivesse um cinto, nessa hora eu o teria apertado. De qualquer forma, me encolhi um pouco, pela primeira vez em muito tempo, frente ao caminho desconhecido.

"Gehshfsdhskfha, prsj sja," disse o funcionário barbudo, que havia se materializado de pé ao meu lado, em sua língua inteligível de rosnados.

"What?" Fui catapultada para 100 quilômetros de distância da minha linha filosófica de pensamentos.

"Tsdçlkasjfhssbmvkcshaga. Urfts," ele insistiu.

"Carlinhos, eu acho que ele quer os passaportes."

Havíamos ultrapassado a fronteia com a Hungria, e como de costume, o moço precisava carimbar os nossos documentos para entrarmos legalmente na União Europeia, cujo país é seu membro integrante desde 2004.

Pensem só na situação do homem. Nós ali na divisa entre a Romênia e a Hungria, no final da tarde, num trem advindo do primeiro surto da Revolução Industrial. Ele deve ter olhado "República Federativa do Brasil" e pensado "Putz. Vou precisar de outro carimbo." 

Eu digo "deve ter pensado", porque na vida real ele só fez outro grunhido, um gesto com as mãos, e foi embora com nossos passaportes.

Foi embora pra longe mesmo, pra outro vagão, talvez pra fora do trem, nessa cidadezinha no meio do nada de Masdhsdsoy Hsjhsduya, ou algo do tipo. Eu e o Carlinhos ficamos nos olhando com uma cara levemente desesperada, rindo nervosamente.

Pensem só na nossa situação. Aquele era a única comprovação da nossa existência e ninguém ali parecia falar inglês. E se a mensagem não chegasse ao maquinista e ele fosse embora sem a gente ter recebido os passaportes? Pra onde o cara tinha ido? Será que a gente ia ser preso? Pra quem eu iria ligar?

"Ele já deve voltar."

Tá. 20 minutos e sem sinal do cara. Já estava pensando em chamar a menina que tava assistindo anime com legenda em húngaro para ser a minha testemunha ocular do acontecido, quando o senhor da barba branca finalmente retorna, meio exausto.

"Bskosdjiahsagaf. Ugh. Friapjafhag."

"Thanks."

Voltei a respirar.

***


Ao chegar em Budapeste, estação Keleti, no meio da noite gelada, não parei muito para analisar os meus arredores. Só queria saber como que nós íamos achar o hotel no meio daquela infinidade de consoantes e acentos que é a língua húngara e suas placas.

O que havia percebido de relance era que a região da ferroviária era bem localizada, cheia de Burger Kings e ruas movimentadas, com uma vibe meio madrilenha, meio Buenos Aires.

Não estava dando muito para Budapeste até agora, mas também não estava decepcionada com o que estava vendo. Talvez esse seja o segredo das paixões mais arrebatadoras: chegam como quem não quer nada, sem expectativas, e de repente bum na sua cara, você foi flechado, sem devoluções.

Com Budapeste foi assim.

Já instalados, meu irmão hiperativo disse que queria passear, e como eu estava com muita fome, não contrariei. Ele disse que tinha visitado um restaurante com a namorada dele, que morou um ano na Hungria, e que lá tinha uma vista muito "legal", a melhor de Budapeste. Ok, legal já tá joia pra mim.

Pegamos o metrô, fizemos baldeação, enfrentamos o vento gélido do final de inverno, subimos as escadas da estação e demos de cara com isso aqui:



"Carlinhos," chamei. Ele estava meio agitado, olhando para os lados como se procurasse alguma coisa. "Carlinhos. Se essa é a melhor vista de Budapeste, então eu acho melhor a gente voltar pra Timisoara, olha."

"Não, não. Era por aqui. Será que a gente pegou a saída errada?"

"Eu que vou saber... Caramba." 

Nesse "Caramba", eu virei de costas. Eu estava de costas para a melhor vista de Budapeste esse tempo todo, admirando a tal igrejinha e o ponto de ônibus. Eu vi isso aqui:


Esse é o Parlamento Húngaro. Gigantesco. Impressionante. Monumental. O lugar que eu poderia passar a vida toda vigiando sem nunca cansar. Minha construção preferida de todos os tempos. Prazer.

E com isso, o eco de Timisoara, fresco em minha mente, foi desvanecendo até apagar-se de vez, com o raiar do dia.

***

Toda vez que você pensar que Budapeste é um nome engraçado, pense que poderia ser pior.

Era uma vez duas cidadezinhas separadas por um rio: Buda e Peste. Perto delas, havia O'Buda.

Um dia, construíram uma ponte.

Essa é a história de Budapeste.

Buda era a parte nobre da cidade, construída nas colinas, onde ficavam os castelos dos grandes reis húngaros. Peste era, bem, a parte do comércio, onde ficavam as pessoas comuns, mas não é devido a isso o seu nome. Hoje, Peste é a parte mais bem desenvolvida, mas percebe-se que ainda há muita rivalidade entre quem nasce do lado de cá ou de lá da ponte.


Ponte esta cuja versão mais recente foi construída em homenagem à Imperatriz Sissi da Áustria e Rainha da Hungria, mas não está na hora de falar sobre ela ainda. Durante a Segunda Guerra, todas as pontes adjacentes foram destruídas, menos essa, pois até os aliados conseguiam respeitar a sua imponência e significado para o povo húngaro.

Afinal, a Hungria era a menina dos olhos da Imperatriz, e não é muito difícil entender o porquê. Budapeste é linda, alegre, viva. Tem uma arquitetura surpreendentemente diversa: parece parisiense, grega, bizantina, mas com um quê próprio envolvente e cativante.

O único problema da Hungria? O húngaro. Mesmo assim, é um destino que eu recomendo para qualquer alma exploradora, que quer passar uma lua de mel consigo mesma. Ou com alguém, não estou julgando. Só com um pouco de ciúmes.

Na Avenida Andrássy, me senti caminhando pelas Champs-Elysées. Passeando pela Praça dos Heróis, ao lado haviam prédios inspirados no Parthenon grego e nas mesquitas de Istambul.


Não sei que lado era mais bonito: se era na antiga Buda, com o majestoso Palácio Real e suas infinitas colinas, ou se era em Peste com o seu Parlamento e a Basílica de São Estevão, ou se era o próprio Rio Danúbio, que corta todo o país e que é verde, por sinal, e não azul. Não alimento rivalidades, me apaixonei pelo inteiro, por igual.

Visitamos a Casa do Terror e testemunhamos as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra e a ocupação soviética conseguinte, e como o povo húngaro prosperou apesar das adversidades.

Visitamos as termas romanas e nos impressionamos com a antiguidade daquele local e da inteligência e astúcia daqueles que vieram antes de nós.

Visitamos o zoológico e eu finalmente conheci um canguru.

Lá, também fiquei cara a cara com a fera das selvas, o tigre. Ele olhou pra mim, eu olhei pra ele. Eu acho que a gente se entendeu. Eu ali, invejando sua grandeza e elegância, e ele lá, invejando a minha liberdade.


Liberdade é um termo relativo. Em relação a ele, eu tinha. Em tempo integral.

Mas antes de conhecê-lo, eu já tinha também, sem nunca ter percebido o real motivo de estar naquele trem. E fiz a escolha certa.

Desacelerei.

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