sexta-feira, 17 de julho de 2015

Viena, a prisão dourada de Sissi


Às vezes, eu tento imaginar como seria a minha vida se eu fosse uma princesa. Não uma princesa da Disney, sabe, daquelas com proporções corporais absurdas, amigos animais falantes e finais felizes musicais. Uma princesa mesmo, do século XVIII, sofrendo para respirar dentro do espartilho, viajando numa carruagem a caminho de uma corte desconhecida onde encontraria pela primeira vez meu noivo anão e minha futura sogra carrasca.

Fico imaginando o que eu faria então, diante dessa situação. Sorriria complacentemente, como a boa moça que minha governanta teria me ensinado a ser? Me rebelaria contra o sistema, à la Joana D'Arc? Ou tiraria proveito da situação e acabaria inventando moda na França, enganando meu marido tolo e mandando comer brioche se não tiver pão, num protótipo de Maria Antonieta?

Acho que não importa muito quem eu gostaria de ser, porque essas três mulheres foram assassinadas de qualquer forma, sorrindo ou não sorrindo, ainda que contrariadas, mesmo que com medo, mesmo sendo princesas. Sim, Joana D'Arc, Sissi, Maria Antonieta, todas entram na categoria de princesas, mesmo que tenham sido soldado disfarçado, imperatriz e rainha excêntrica, respectivamente. Afinal, se toda garota é uma princesa, conforme aquele famoso filme prega, esse conceito abstrato precisa se expandir, ganhar novas facetas, novos ângulos a serem analisados. Nenhuma garota é igual. Tudo bem, eu concordo totalmente. Mas só vou aceitar meu direito congênito de me intitular princesa assim que eu descobrir, de fato, o que significa ser uma. Não aceito responsabilidade à toa.

Em Viena, não encontrei minha definição de princesa, e nem vontade de ser uma, mas cheguei a outra conclusão interessante: na dúvida, confie no italiano (mas nem sempre). Passei um bom tempo tentando me lembrar como que havia chegado de Budapeste na capital austríaca, mas não lembro de nada dessa viagem. Por tudo que eu sei, um dia eu estava correndo com os cabelos ao vento no tempo ameno e agradável da Hungria, feliz e despreocupada, e acordei materializada numa cidade pretensiosamente enfeitada, gelada e cinza. Viena. Ou como eu gosto de chamá-la: "O lugar onde o vento literalmente faz a curva".


De malas e cuia no meio da Áustria, nunca me senti mais fora de sintonia do resto do universo. Era a primeira vez que eu visitava um país legitimamente do lado nazista na Segunda Guerra, e pode parecer pouca coisa hoje, mas não é. Existe uma carga pesada no ar, um elefante roxo no quarto que ninguém ousa mencionar. Morrendo de frio, parada na calçada tentando segurar um mapinha maroto com claras intenções de sair voando pro Pólo Norte, é assim que começa a minha primeira lembrança dessa cidade nem tanto inesquecível.

Não que a Áustria seja um lugar ruim, ou feio, ou de pessoas ruins, ou feias. Não é. Viena é majestosa com seus infinitos castelos e construções reais, cheia de gente do mundo todo, em especial negros e asiáticos, o que me fez pensar molecamente "Toma no OLHO, Hitler", que por sinal, também era austríaco.

Não existe absolutamente nada de errado com Viena. Nada, sabe, além da vibe. Turisticamente falando, se você estiver indo para lá, esteja preparado para fazer muitos passeios fechados sem poder usar a câmera dentro de museus e palácios e jardins chinfrins de uma dinastia que você provavelmente não conhece bastante ou não liga o bastante, a dos Habsburgos.

Pra mim, tudo beleza, eu adoro passear dentro de castelo e adoro a história da Sissi, que você provavelmente está se perguntando quem é neste momento, e não, não é a da música do Alexandre Pires. 

Em teoria, eu teria adorado Viena. Na prática, eu nunca conheci cidade mais chata. Tão chata que meus dedos começaram a se automutilar dentro da minha bota e eu tive que achar band-aids pra comprar num mercado em que tudo estava escrito em alemão, inclusive a palavra band-aid. Tão chata que a trilha sonora dos nossos passeios foi embalada por sucessos oriundos das profundezas do inferno do nosso subconsciente, pois era só o tédio aparecer que alguém começava a cantar "Oooh, Antônia brilha", o jingle da drograria famosa da esquina e, claro, principalmente, sem sombra de dúvidas, era só olhar um quadro da imperatriz que alguém irrompia o esperado "O NOME DELA É SISSI! SISSI!".

Palácio de Schönbrunn

Não me admira que nem meus dedos do pé aguentaram a pressão e tentaram saltar fora.

Sem muito pra fazer além dos mesmos roteiros todos os dias, minha mente embarcou numa viagem própria ao passado, tentando entender melhor aquela cidade que eu tanto estava desprezando... por que deveria haver um motivo, e um motivo muito bom para eu não estar apreciando aquela inestimável joia da monarquia, equiparada a da corte parisiense.

Meus devaneios me levaram de volta à infância, mais precisamente, àqueles dias tristes em que a minha mãe não aceitava assistir Cinderella de novo comigo pela quadragésima oitava vez, e colocava um DVD chato, longo, em outra língua cheia de rugidos, sobre uma garota bonita que se tornava imperatriz do império austro-húngaro: Princesa Elizabeth da Bavária. Para os íntimos, Sissi.

Hoje, eu assisto a trilogia de DVDs sozinha, com pipoca, por livre e espontânea vontade. A história em muito se difere dos acontecimentos reais, mas fazer o quê, é cinema mesmo. O importante é saber que Sissi era uma garota de espírito livre, que adorava a natureza e andar a cavalo e vivia no seu próprio conto de fadas rural... até o dia em que ela se casou com o Imperador Franz Josef, quando o conto de fadas paradoxalmente se tornou um pesadelo horrível.

Nem era ela a prometida, era a sua irmã mais velha, Helena, mas o imperador se encantou tanto com a jovialidade da adolescente Elizabeth que desafiou a escolha da mãe e decidiu-se pela outra prima, que gostava bastante dele ou nem um pouco, dependendo da fonte histórica. O fato é: não era para a Sissi estar ali.

Helena teria dado uma ótima imperatriz, divina, com seu amor às regras e ao protocolo, aos cabelos armados e vestidos sedosos, calma e serena e chata pra caramba. 

Mas ele foi inventar de querer a Sissi, então o menino teve que segurar o forninho.

Sissi ficava andando pelo palácio de pijama, descalça, fugindo de madrugada para cavalgar, encrencando com a sua senhora sogra madame Sofia por tudo, desrespeitando toda e qualquer regra estabelecida na história da corte. Depois de coroados, ainda por cima, Franz mal tinha tempo para acompanhar o "treinamento" real de sua esposa, deixando-a inteiramente sob os cuidados da mãe, que abertamente odiava a nora.

Odiava tanto que quando a sua primeira filha nasceu, "Sofia", a arquiduquesa tirou-a dos braços da imperatriz e foi embora com ela. Pra sempre. Ok, não pra sempre, mas ela fez questão de exigir que toda a educação da menina fosse encargo dela e a impedia vê-la, já que uma imperatriz digna é atarefada demais para se preocupar com essas coisas.

Depois disso, o inferno da vida de Sissi só piorou. Sofia morreu aos dois anos, Gisela não era muito fã da mãe por conta da avó, mas quando o herdeiro Rodolfo se suicidou aos trinta anos, a imperatriz não conseguiu superar a dor e passou a usar o preto até o final de sua vida, que veio não muito tempo depois.

Sissi foi assassinada por um anarquista italiano, Luigi Lucheni, em Genebra, que a princípio nem queria matar a imperatriz, e sim o herdeiro do trono da França, o príncipe D'Orleans, mas ele tinha ido embora no dia anterior. Numa tática que pode vulgarmente ser descrita como "Se não tem tu, vai tu", o italiano caminhou em direção à Sissi e a acertou com um estilete fino no peito. Com a quantidade de roupas que a mulher estava usando, ela nem sentiu dor ou percebeu a gravidade da situação, achando que ele estava apenas tentando roubar o seu relógio (sério). Ela correu para não perder o seu navio de volta para casa, mas uma vez lá dentro, desmaiou.

Após sua acompanhante conseguir desabotoar todas as camadas de vestido, percebeu que a imperatriz estava sangrando muito.

Sissi estava morta.

"Que depressivo", dizia o meu irmão ao explorar os castelos comigo, chateado por não poder tirar foto de nada. Vimos cartas que Sissi escrevia para os irmãos na Bavária com muita saudade, poemas sobre como ela se sentia um pássaro preso numa gaiola, de como ela sentia falta das montanhas, da família, da simplicidade, da liberdade.


A única felicidade que Sissi tinha era quando ela podia viajar. Ela adorava a Hungria, e numa manobra política surpreendente, conseguiu coroar o marido como Rei da Hungria com a sua influência, já que ela era aclamada pelo povo húngaro. Amava a Grécia, Portugal, a menina tinha bom gosto.

Viena para ela era como uma prisão, revestida de ouro e brilhantes. E por que não seria?

Talvez tenha sido isso. Talvez conhecer a verdade sombria de uma das minhas histórias favoritas tenha sido o catalisador de todos esses pensamentos ruins. Talvez a minha empatia pela imperatriz fosse tão grande que eu só conseguisse ver a cidade-palco de sua tragédia com os seus olhos.

Talvez.

Cortando meu caminho com dificuldade por causa do vento gélido, cheguei à Stephansdom, Catedral de São Estêvão. Por fora, parece uma cadedral europeia como qualquer outra, mas por dentro, é o lugar mais suntuoso que eu já vi. Impressionante mesmo e as fotos confirmam.



Eu estava animada para ir pra lá porque havia visto um video do John Green visitando as catacumbas da igreja e esse é o tipo de passeio que eu não podia perder. Na idade média, tinha tanta gente enterrada lá embaixo que Viena passou por uma crise de fé, porque as pessoas se recusavam a ir pra igreja com aquele cheiro horrível exalando.

Depois de tirar as fotos mais marcantes da minha carreira não-existente, vi um brasileiro com jeito de mineiro na frente da porta das catacumbas, falando com um bando de gente, alternando entre o português e o alemão. "Tá fechada, ué, fechada mesmo", ele dizia. Depois "Que loko, mano, maneiro". Ele falava de um jeito tão engraçado que dava pra notar um "xD" no final de cada frase dele. Um emoji humano.

As catacumbas ficaram para outro dia. Outra viagem. Outra vida? Que pena.

Outra coisa que vale se comentar sobre Viena é o cardápio, sim, as comidas típicas, regionais e únicas: Schnitzel e Apfelstrudel. Ou traduzindo: bife empanado e torta de maçã. Nota-se a criatividade do povo austríaco nos pequenos detalhes da vida.

É por isso que todo dia nós praticamente almoçávamos e jantávamos no mesmo lugar, um restaurante italiano caseiro perto do nosso hotel, onde nós fizemos amizade com o dono. A comida era muito boa e ele sempre vinha conversar com a gente em italiano, depois que a gente passou uns 6 minutos no primeiro dia tentando decidir como que a gente ia pedir a comida, já que a gente não falava alemão e ele não tava falando nada em inglês. É sempre um desespero na Europa quando isso acontece.

Depois de treinar muito bem o nosso pedido, até a parte de dizer que a coca era sem limão, mas com gelo, ele ficou morto de alegre de encontrar compatriotas nessa terra cinza e constipada.

"Siamo brasiliani", esclarecemos.

"Brasiliani! Meglio!"

E pronto, foi Neymar pra cá, Pelé pra lá. Eu lembro de ser feliz lá comendo bem. Pois é, pequenas felicidades da vida. Talvez um dia eu volte só pra dar oi. Talvez isso faça valer a pena.

"Os austríacos são estranhos," ele disse, fazendo o icônico sinal do dedo indicador girando perto da testa. "Lelés", ele quis dizer.

Mas os europeus, em geral, tem um senso de humor distorcido, além de outras coisas. Visitamos o primeiro parque de diversões da Áustria e o Madame Tussauds que ficava lá (pra nunca mais). O parque tinha algumas atrações que eram morte certa, do tipo PERIGOSÍSSIMO mesmo.

Eu tenho pesadelos com a casa mal-assombrada de lá até hoje, e olha que eu nem entrei. Era uma coisa do capiroto, que deveria ser proibida para menores de 80 anos, e proibida também para maiores de 80 anos para não causar infarto fulminante. As vozes do mal ficavam entoando etereamente convites em alemão para todos que passavam, e a trilha sonora era uma mistura de canção de ninar do demo e rock pesado ao mesmo tempo.

Apalpando a traseira da Imperatriz da Áustria

Ah, Viena.

Fugimos de ti por um dia e encontramos algo ainda pior. Bratislava, porém, fica para o próximo post.

Não era Sissi, Viena, é você.

Você é chata e quer que seja tudo do seu jeito, na sua hora, e se reclamar, vai ter em dobro. Você é a personificação do gelo inconveniente do final de março. Você come mal e tem hobbies ruins e não deixa que ninguém tire sua foto. Você é tipo eu, só que pior.

Eu, que não sou princesa e agradeço aos céus por não ser, pois isso me dá o direito de ser assim, do meu jeitinho plebeu único.

E você, qual a desculpa?


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