domingo, 11 de dezembro de 2016

Uma retrospectiva introspectiva


Eu era (mais) jovem e achava que o mundo inteiro me receberia de braços abertos e com um manual de instruções. Não aconteceu exatamente assim. Sai ano, entra ano, e eu aqui continuo a enfrentar o meu maior e mais longo desafio como membro ativo da sociedade: o pavor de não parecer um ser humano bem ajustado.

Reconhecendo o meu privilégio de contar com experiências maravilhosas proporcionadas por uma família financeiramente estável e que só deseja que eu seja feliz, por muito tempo me senti culpada por ser "assim", por algum motivo incapaz de aproveitar plenamente as oportunidades que a vida me entregava, sem conseguir tomar as rédeas do meu futuro.

Mas nem sempre foi desse jeito.

Foi logo após do aniversário da décima sexta pirueta que o planeta Terra deu ao redor do Sol após o meu nascimento. Eu estava vivendo sozinha na terra dos reis e rainhas que definiram o rumo dos acontecimentos que vieram a marcar a narrativa deste mesmo planetinha azul no último milênio - Londres. A cidade era grande demais e eu, diminuta. Graciosa onde eu era inadequada, tradicional onde eu era exceção, firme e estável como os leões de pedra do rio Tâmisa. 

E eu? Eu estava lá no meio, existindo no meio da multidão, tentando não atrapalhar o fluxo.

E aí, aconteceu. E aconteceu de novo. E de novo. E continuou acontecendo. Algumas vezes eu soube lidar, muitas outras não. Peguei o ônibus errado e fui parar em outro distrito, perdi o trem à noite no meio da nevasca e me vi sentada no final da linha, fui abraçada por estranhos na rua e achei que estava sendo assaltada, paguei por coisas desnecessárias porque não consegui dizer não, deixei de comer em vários lugares por não conseguir captar como pedir a comida sem chamar atenção, não participei de vários programas divertidos por não saber como agir normalmente, deixei de fazer amigos por não acreditar que alguém realmente fosse ter interesse em me acompanhar na minha jornada. Eu estava meio... fora de controle. Um tucunaré fora do Rio Solimões.

Arfando. Hiperventilando. Sentando no chão da estação. Gaguejando e chorando e desistindo e levantando e aprendendo. Vaguei as ruas daquela cidade milenar com a minha câmera e o meu bloco de notas dia após dia e construí minhas memórias incríveis mesmo assim, no meu ritmo, nos meus termos - com as minhas difíceis limitações.

A ansiedade é um mal terrível e silencioso, que vai corroendo por dentro todas as vontades e sonhos e esperanças até transformá-los em uma massa uniforme e cinza, inquieta e sem emoções. Não, não dá para se "acalmar" ou "tentar não ficar nervosa" ou "pensar que é tudo coisa da sua cabeça". Não é assim que funciona. Muitos aqui com certeza se identificam com isso também. 

Mas nada que a minha cruel ansiedade tenha me privado doeu tanto quanto essa história que teve seu início frustrante em janeiro de 2013 e finalmente encontrou o seu final feliz em fevereiro de 2016, quatro anos depois. História de superação? Nem tanto. Mas uma conquista válida mesmo assim.

E ela tem tudo a ver com um certo pintor impressionista holandês.

Quando eu tinha 15 anos e já apresentava sinais de um gosto um tanto quanto duvidoso para homens, me descobri apaixonada por Vincent Van Gogh - sim, o pintor. A vida dele me fascinava e eu passava horas na Internet assistindo documentários e lendo livros das cartas de correspondência dele para sua família e colegas. "Noite Estrelada" era a minha junção de cores e formas predileta em todo o universo - e existem rastros dessa fase inclusive neste mesmo blog, que felizmente já está aqui há 7 anos tornando públicas todas as minhas obsessões adolescentes.

Sendo assim, no momento em que pisei na Inglaterra, sabia que precisava visitar o museu de arte da National Gallery, onde estão expostas várias da obras do Van Gogh. Mas o que acontecia ao invés disso diariamente era mais ou menos assim: 

Hoje é o dia em que eu vou acordar, pegar o trem e o metrô, atravessar Trafalgar Square e entrar no museu. (Mas ninguém quer ir comigo, então talvez eu vá amanhã).
Hoje é o dia em que eu vou acordar, pegar o trem e o metrô... (Mas tá nevando e eu ainda não aprendi o caminho. Talvez amanhã.)
Hoje é o dia em que eu vou acordar... (Não consigo sair da cama. It's too much. Amanhã.)

Um dia, porém, acordei disposta e os sinais do universo pareciam auspiciosos, então fui. Tendo 1 pequeno ataque de pânico quando a moça da recepção me fez algumas perguntas sobre um panfleto que ela estava entregando, eu adentrei a ala principal e finalmente pude respirar.

Certo, pensei. Agora é só seguir as placas até chegar na exposição.

Mas as alas se estendiam e se aprofundavam e se intercalavam e eu fui me vendo cada vez mais perdida, no meio de hieróglifos egípcios e porcelanato romano. Onde está a bendita ala pós-impressionista? É só uma das pinturas mais famosas do mundo.

Horas se passaram. Eu não achei o quadro. Precisava ir para a aula e já estava exausta socialmente.

Tudo bem. Outro dia eu volto e procuro as pinturas. É uma questão de honra agora.

Uma semana depois eu voltei, dessa vez com um mapa em mãos. Estava completamente ignorando o fato de ter uma habilidade de ecolocalização pior do que a da baleia beluga do filme da Dory, por sinal. É só seguir o mapa. O mapa é claro e não mente e não é uma pessoa e não me julga se eu errar o caminho.

Não preciso dizer que não achei a seção naquele dia. Talvez ela nem existisse e fosse só uma construção da minha mente febril, talvez os corredores estivessem se duplicando, e se eu olhasse para cima as pinturas estariam com rostos borrados e tudo aquilo fosse produto de um sonho sadístico de uma mente com muito mal gosto, e pior de tudo - minha.

Tentei outra vez mas não passei da escada, de onde tirei essa foto.



Eu voltei para o Brasil naquele ano me sentindo um fracasso. Se ao menos eu tivesse perguntado para alguém, se ao menos eu tivesse engolido aquele pavor por 10 segundos, se eu não fosse tão... mas eu sou tão... e nunca vou... e ninguém pode saber.

Os anos se passaram e eu aprendi uma coisa ou duas sobre como ser um humano bem ajustado. Fale menos, sorria mais... não deixe ninguém saber a sua opinião de fato. Vai dar tudo certo porque você merece. #EntendedoresEntenderão

E a vida seguiu em frente, eu e a ansiedade caminhando lado a lado como eternas rivais que precisam da outra para sobreviver - Coringa do meu Batman, Moriarty do meu Sherlock Holmes, a bruxa do meu conto de fadas.

Nesse ano de 2016, então, não paramos um minuto. Mudamos de cidade, de estado, de faculdade, de curso, aprendemos a morar sozinhas, uma com a outra, 24 horas por dia. Tivemos que aprender a lidar com o fato de que a Disney era passado e que todo o resto empalidece em comparação, uma das poucas coisas que concordamos e lamentamos.

Mas no placar Eu X Ansiedade, inserido no jogo mortal Mundo X 2016, eu ganhei um ponto que me tirou do negativo e que ela (e o ano de 2016) nunca vão poder aceitar. Porque foi feliz demais. E assim eu durmo um pouco mais tranquila à noite.

Era Londres novamente, só que completamente diferente. Era Nova York. Eu estava mais velha, mais vivida, e não estava sozinha. Eu estava realizada, feliz, e melhor - eu não estava esperando.

Eu aprendi a falar em público, a esconder o meu pânico, a entrar em estabelecimentos e pedir por ajuda. Aprendi a let go e ser livre de vez em quando e não ter medo do ridículo. Aprendi a iniciar conversas, a abrir contas no banco, a ligar para marcar as minhas próprias consultas médicas, a ir ao cinema sozinha e responder pelos meus próprios erros.

Parecia até que eu tinha vencido.

E eu venci mesmo, naquele dia - em que estávamos comemorando um trabalho bem feito numa das empresas mais influentes do mundo, lembra? Só aproveitando a companhia de amigos e a cultura da cidade mais cosmopolita do mundo, sem a austeridade de Londres sufocante ao redor.

Não era a National Gallery, mas era o Museum of Modern Arts, e de repente, sem aviso, entre uma gargalhada e outra, eu havia chegado na ala pós-impressionista. Sem ao menos procurar. Assim, de mansinho, como quem não quer nada, como um reencontro de uma amizade sincera perdida com o tempo.

Lá estava ela. A Noite Estrelada.

Onde você esteve esse tempo todo?, ela parecia me perguntar da sua moldura.

Eu? Eu estive caminhando lenta, mas certamente, em direção a você.

Naquele dia, a Ansiedade ficou calada no meu subconsciente em sinal de respeito, pois ela sabia o quanto aquele momento era importante para o meu progresso narrativo. Mas ela me forneceu, discretamente, lembranças de uma frase que eu pensava que havia esquecido:


E para 2017, o que eu desejo para todos nós? Um passinho atrás do outro. Certeza mesmo teremos de nada... mas que a visão das estrelas nos permita sonhar.

Parabéns por mais um ano vencido, pessoal. Até a próxima e boa noite.

3 comentários:

Fatima Vasconcelos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fatima Vasconcelos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fatima Vasconcelos disse...

Seu jeitinho de contar estórias é delicioso! Parabéns! :* <3