terça-feira, 8 de setembro de 2015

Contraindicado em casos de suspeita de Bratislava


Nosso querido e saudoso escritor Douglas Adams já dizia: “Na vida, há várias centenas de experiências, sentimentos e situações que todos conhecemos e reconhecemos, mas para os quais não existe uma palavra. Por outro lado, o mundo está infestado com milhares de palavras sobressalentes que passam o tempo todo sem fazer nada além de vadiarem por aí em postes de sinalização apontando para lugares."

Sabe o ligeiro desconforto que você sente ao se sentar em um assento que ainda está quente da bunda de outra pessoa? Ou quando você se encontra parado na cozinha sem saber exatamente o que foi fazer lá? Todo mundo conhece essas sensações, porém somos ingênuos o suficiente para acreditar que somos únicos nas nossas esquisitices, talvez pelo simples fato de que ninguém nunca tenha parado para nomear esses momentos fugazes, que passam despercebidos pela memória.

Aliás, "Woking". É por esse motivo que você abriu a geladeira de madrugada mesmo sabendo que só tinha queijo vencido dentro. E já que estamos desvendando os mistérios da experiência humana, conheçam "Abilene": é esse o descritivo do frescor agradável do lado inverso do travesseiro.

O que essas palavras têm em comum? São todas nomes de cidades do interior do interior da Inglaterra, que previamente não denotavam significado maior além de "pois é, nasci lá". Para Douglas Adams, no entretanto, essas foram palavras oportunas e divertidas que o ajudaram a traduzir o inexplicável, cujos verbetes ele reuniu em seu livro "The Meaning of Liff".

Como toda boa ideia, essa surgiu em uma viagem do autor, dessa vez à Grécia, ou seja, em um momento maravilhoso em que estamos relaxados, atentos e propícios a acreditar em mais do que seis coisas impossíveis antes do café da manhã.

Então foi assim, relaxada, atenta e propícia a aceitar situações impossíveis, que eu embarquei na maior inocência em um trem para a pacata capital da Eslováquia, Bratislava.

Eis o que se seguiu.


A ideia era tão boa como qualquer outra. Mais um dia na cinzenta e austríaca Viena e começaríamos a falar espontaneamente em alemão, frustrados, soltando grunhidos pelos ares. A Polônia era muito longe e voltar para a Hungria não era uma opção. Por que não, então, dar uma chance para a outra capital europeia localizada a meia hora de distância, que nas fotos parece tão pitoresca e agradável?

Não, vamos sim. Parece divertido, Carlinhos. A previsão do tempo disse que iria ficar muito frio e chover, mas talvez a área só cobrisse a Áustria, e não a Eslováquia. Imagina só uma chuva tão potente que fosse cobrir dois países, não, é um absurdo. Vamos sim.

Fomos. No trem, eu cedi à tentação recorrente de apoiar a cabeça no vidro gelado e pulsante da janela, só porque eu podia e achava legal e fresquinho. Não sei se existe uma palavra para isso, eu já procurei, mas sei que muita gente faz isso no avião. Deve ser terapêutico. O que eu percebi, no entanto, ao fazer isso, na época ainda não entendia o significado, mas hoje eu sei que se refere ao occhiolismo, uma palavra obscura criada pelo americano John Koenig. A consciência da pequenez da sua perspectiva.

É óbvio que iria chover forte em qualquer lugar a 30 minutos de Viena também, não importa se isso atravessa uma fronteira imposta por convenções políticas, ou o quão positivo seu pensamento seja. Mas não foi por isso que cheguei a essa conclusão. O que eu estava pensando mesmo não tinha nada a ver com o tempo; estava maravilhada com a prova física de que mesmo com poucos quilômetros de distância, dois lugares poderiam ter histórias, paisagens, línguas e costumes completamente diferentes um do outro, mesmo que separados apenas por uma linha imaginária fortalecida pelo tempo.

Aqui no Brasil dificilmente nos deparamos com essa perspectiva, visto que vivemos em um país de proporções continentais e um mero adolescente com seus 515 anos de história "oficial". Na Europa, é tudo tão pertinho, tão pequenininho, que você fica até impressionado com as mudanças bruscas de cenário. Isso me faz imaginar as pessoas na era medieval brigando pelo seu pedacinho de terra, que claramente era muito melhor e infinitamente superior ao outro pedacinho de terra do vizinho, por isso eles precisavam morrer.

Se ao menos aquele trem fosse uma máquina do tempo me transportando diretamente para o passado, para que eu pudesse presenciar ao menos por um dia os grandes reis da Hungria sendo coroados no Castelo de Bratislava, ou pudesse bater um papo com a Sissi e colocar um pouco de juízo na cabeça dela, afinal, tudo isso aconteceu tão pertinho, aqui, exatamente aqui neste lugar... centenas de anos atrás. É onismo, sabia? A frustração de ficar preso em apenas um corpo, que habita somente um lugar de cada vez.

De qualquer forma, chegamos. Nossos únicos corpos orgânicos nesta dimensão do espaço-temporal desembarcaram na ferroviária eslovaca, consideravelmente confusos e amedrontados. Era a Eslováquia ou era a Turquia? Porque parecia que havíamos aterrissado de paraquedas no meio de Istambul, tamanha era a desorganização e desleixo da estação, com cara de poucos amigos e ande rápido.


"Acho que precisamos de um mapa", sugeriu brilhantemente meu irmão. "Podemos ir andando até o centro histórico."

Mais uma daquelas ideias impossíveis que acreditamos antes do café da manhã.

Achamos o mapa, sim, mas até nos acharmos... digamos que o mapa tinha todas as ruas, menos as que nós calhávamos de andar. Esquerda virava direita, Alexandre virava Afonso e tudo era em eslovaco. E a chuva caindo no frio de zero grau. E nada de centro histórico.

Em um certo momento, avistamos o principal ponto de referência da cidade: O Castelo, que ficava no topo de um monte e foi construído em meados dos anos 800. "Agora vai ser fácil", pensamos.

De repente, uma encruzilhada. 

À esquerda, um túnel que parecia seguir reto em direção ao pé do monte. À direita, um caminho desnivelado que se afastava um pouco do destino, mas talvez nos levasse para mais perto do centro. Afinal, aqueles dois eram os únicos pontos turísticos, poderíamos visitá-los em ordem invertida sem problemas.

"Eu acho que li num site que podia passar por um túnel para chegar no centro", disse meu irmão.

"Eu não lembro de ter visto isso", discordei, mas quem sou eu pra saber dessas coisas.

"Deve ser um atalho."

"Mas esse túnel ao menos tá no meio do mapa?"

"Até agora eu não achei, mas não dá pra achar nada direito aqui."

"Então, o que a gente faz?"

"Eu acho que a gente devia tentar o túnel, qualquer coisa a gente volta."

"É, tá bom. Realmente parece mais perto, e ao menos assim a gente foge da chuva."

Énouement. O sentimento agridoce de ter chegado ao futuro, vendo como as coisas andaram, mas sem poder contar ao seu eu do passado.

Entramos.

A princípio, não conseguimos ver onde o túnel acabava, mas como estávamos absortos em conversa, não nos preocupamos.

Em poucos segundos percebemos o quanto era estranho um túnel daqueles não ter nenhum carro passando, nenhum pedestre, nenhum movimento, nada. Só uma linha reta, escurecida e sem fim. Senti um arrepio. Era a kenopsia. Uma atmosfera sinistra, desamparada, de um lugar que normalmente é agitado com pessoas, mas agora está abandonado e silencioso.

Caminhávamos pelas laterais por costume, quando percebemos os trilhos de trem marcados no chão. "Ah, então está explicado", pensei. "Aqui é um túnel abandonado de bondes."

A cada minuto, nos afastávamos cada vez mais da entrada, sem qualquer estimativa de quanto faltava para emergirmos do outro lado. Naquele momento, tudo que havia era o túnel, o mundo exterior uma completa ilusão. Podíamos ter passado horas, dias, anos lá dentro, com a nossa percepção de tempo percorrido irrevogavelmente embaralhada. 

Foi então que ouvimos, ao longe, um som pavorosamente familiar.

Nos entreolhamos, e aceitamos nossas chances estoicamente. 

"Fica bem perto da parede", avisou meu irmão, levemente nervoso. Mal tivemos tempo para nos preparar.

O bonde passou.

Em altíssima velocidade.

Do nosso lado.

Era um túnel de uso exclusivo para bondes.

E depois do primeiro, aquilo virou uma congregação de bondes. Um à esquerda, outro à direita, dois simultaneamente, e nós lá dentro. E o túnel nem perto de acabar, o início longe esquecido. Todos passando perigosamente perto da nossa posição. Era preciso só um deslize e...

"Seguinte, vamos dar uma corridinha."

Corremos. Se você tivesse passado atrás de nós naquele momento, teria visto uma imagem bastante peculiar naquela manhã chuvosa de fim de inverno. Felizmente, você estava no conforto de casa e não precisou. Tudo bem, eu vou descrever mesmo assim.

O que você acharia se visse um homem e uma mulher correndo atrás do outro dentro de um túnel de bondes deserto, a uma distância remota da civilização?

Exatamente. Eu também me apressaria para salvar a indefesa mulher das garras do assassino da machadinha.

Há meses estávamos tentando escapar do túnel, desviando de bonde após bonde, sem saber o que nos aguardava do outro lado. De repente, uma fraca luz se aproximava no horizonte.

Era outro bonde. Voltando.

Mas depois, outra fraca luz deu sinal de vida. Era o fim. A luz do fim do túnel.

Alguns minutos depois, chegamos até lá e atravessamos os trilhos correndo, saindo pelo lado esquerdo.

Olhamos para o cima e encaramos o céu. Is this real life?

Na verdade, eu encarei o céu. Meu irmão encarou a paisagem, perplexo.

"Cadê o castelo?". Não havia mais nem resquícios do monte do castelo gigante. Não sabia mais nem em que direção ele deveria estar.

Estávamos no que parecia um cenário de guerra, tudo em reforma, muito longe de onde havíamos entrado. "E agora?", era o pensamento que nenhum de nós queria vocalizar.

Mas não precisamos. Fomos distraídos por outro som conhecido, vindo de dentro do bonde. Era um carro da polícia.

"Ah, DE REPENTE, pessoas que TRABALHAM aqui".

"Is everything alright?", perguntou o policial no volante, desconfiado.

Meu irmão ergueu as mãos imediatamente. "WE'RE BRAZILIAN. WE'RE LOST."

O policial então ergueu a sobrancelha, avaliando a situação por 1 segundo, e então sua cara se encheu de algo que os alemães chamariam de Schadenfreude, ou o sentimento de prazer derivado de assistir desgraça alheia. O cara queria muito rir da nossa cara, mas ele conseguiu se conter. 

Após explicada a situação, e o policial esclarecido que não podíamos ter entrado ali, ele nos apontou a direção de volta à vida em sociedade.

Se tivéssemos seguido à direita na rua desnivelada, teríamos chegado ao centro em 5 minutos.

Mas como havíamos escolhido o caminho de meia hora pelo túnel, agora precisávamos de mais 20 minutos até chegar ao centro da cidade.


"Uma ponte", meu irmão disse, numa reflexão mais tardia. "O site disse que o atalho era pela ponte."

"Não pelo túnel."

"Não."

"E que ponte era essa?"

"Eu não sei."

Caímos na gargalhada.

*

Essa foi a história de como eu quase fui atropelada por um bonde na capital da Eslováquia, num dia gelado e chuvoso do mês de março.

Espero que este relato tenha feito vocês terem vontade de visitar a Eslováquia. Vale a pena ir. (Uma vez.)

Em meio a grupos gigantescos de japoneses que um dia eu juro que vão dominar o mundo, encontramos uma cidade de charme decadente, decorada com estátuas divertidas em todos os lugares, e uma juventude considerável, pelos padrões europeus. O castelo, afinal, foi mais uma viagem, só que dessa vez estávamos no caminho certo e tinham pessoas por perto.


E se você for, não se esqueça: o atalho é pela ponte. 

Não pelo túnel.

De preferência, não pegue atalho nenhum e siga rigorosamente as placas, ok? Ok.

Pode perguntar mesmo, eles respondem em eslovaco, mas uma hora você vai acabar acertando.

*

Após essa experiência, tomei a liberdade de inventar a minha própria palavra:

Bratislava. O sentimento de estar perdido dentro de um túnel sem saída em um país desconhecido, sendo atacado por bondes de todos os lados, enquanto se procura o caminho para um castelo no topo de uma montanha.

É um sentimento bem específico, mas se o ser humano nomeou a anatidaefobia, que é o medo irracional de de estar sendo observado, seguido e vigiado por um pato, eu acho que a bratislava também tem espaço no nosso dicionário.

O túnel

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