quarta-feira, 11 de maio de 2011

Vida de sardinha


Ainda falta inventar uma coisa mais chata/aterrorizante/incômoda do que fazer exames. Deita pra lá, vira pra cá, agora fica quietinha, não, não mexe. Tremeu. De novo.

E era exatamente nisso que eu estava pensando na sala de espera do consultório enquanto O Clone passava na TV. Pensava nisso e fazia a tarefa de matemática, ou simplesmente pensava nisso e deixava a caneta no automático.

Pra quem não sabe, colegas, eu tenho problemas mandibulares. Meu maxilar é deslocado, e eu estou no meio de um tratamento dentário. Até tirei o aparelho esses dias, mas eu sabia que a felicidade não iria durar muito. Porque eu só tirei por causa do exame.

Ressonância magnética.
Se você assiste House como eu, não preciso explicar como funciona. Mas se não, leigos da medicina, em palavras vulgares - é aquele tubo que te colocam dentro, sem poder se mexer, enquanto te assistem na outra sala.

Um tubo simpático e claustrofóbico. Ou só claustrofóbico, é.

Não larguei o livro de Matemática quando me chamaram para a outra sala de espera. Meu pai ia fazer um raio-X, e ele logo apareceu vestindo uma bata verde vômito.

Às vezes eu acho que os médicos, não satisfeitos em nos ver sofrendo, querem nos humilhar também. Essas batas, de tamanho único, são o pior atentado à moda - e à dignidade - que existe no mundo moderno.

Estava ansiosa. Queria terminar aquilo logo. Tentei passar confiança para as crianças (nem tão) felizes ao meu lado, tentando pagar uma de intelectual com o meu X (literalmente). Mas a minha borracha caiu, meu fichário caiu, e a minha vontade também. Logo fechei o livro e esperei minha vez.

-Sra. Ana Rodrigues? - perguntou uma moça pra mim.
Eu nem prestei atenção, já que eu tenho um bando de nomes, e Ana Rodrigues, muito mais Sra. Ana Rodrigues, seriam as últimas coisas que eu iria pensar que se referiam a mim.
Ela perguntou de novo, aí eu saquei.
-Aaaaah, sou eu.
-Vista isso. - e me entregou a maldita bata verde, com uma chave para guardar minhas coisas em um dos armários.

Enquanto seguia solenemente para o cubículo onde as pessoas se trocavam, passando pelos banquinhos das pessoas verdes, lembrei que logo me tornaria uma delas.

No cubículo, consegui derrubar a bata, meus óculos, meu relógio e quase tropecei no meu sapato. É que eu sou muito jeitosinha. Aquilo nem tinha espelho. Melhor, pensei.

Saí e encontrei meu pai verde, que colocou meu colar e relógio dentro do meu tênis e os guardou no armário. E agora, esperaríamos. Quanto? Não sei.

Nem relógio eu tinha. E isso foi agoniante. Eu só tiro meu relógio pra tomar banho, e olhe lá. Vivo em função dos minutos, e sem eles, sinto-me completamente perdida.

E lá na cadeira, vestida num saco verde, sem relógio, prestes a encarar a vida em um tubo, enquanto luzes vermelhas indicando radiotividade piscavam na porta ao lado, eu poderia estar filosofando sobre a aventura que é a vida. Mas é claro que meu cérebro estava ocupado demais em reclamar para divagar sobre tudo isso. I REGRET NOTHING.

Já estava prestes a virar uma autisa e bater minha cabeça na parede quando ouvi alguém chamar o meu nome. Uma mulher de bata rosa claro, cabelos presos e cara de quem não aguentava mais ver pessoas de verde naquele dia.

Entrei na sala de exame e vi. O tubo. Lá estava ele, me desafiando. Deitei na maca na frente dele, e a mulher começou a me amarrar (literalmente) na cama. Disse que eu não podia me mexer, nem ao menos mexer a cabeça, muito menos falar. Disse que o exame iria durar meia hora, e me deu um botão para apertar caso eu começasse a infartar lá dentro. Disse também que se isso acontecesse, eu só podia arrastar meu dedinho até o botão e pressioná-lo. Disse que no final do exame, ela iria colocar três seringas na minha boca e...

-O QUÊÊ? - gritei, enquanto bolava um plano de fuga. Bolas, estava amarrada, e minha cabeça, presa. - Tem agulhas envolvidas no meio?

A mulher não deu ouvidos para o meu pânico, e explicou que iria colocar seringas de tamanhos diferentes na minha boca para avaliar a mordida e...

-Você pode dizer que vai colocar tubinhos? Eu me sinto melhor se você falar tubinhos.

... e que eu não podia mexer a boca, nem ao menos engolir saliva. Eram três tubinhos, um maior que o outro, como ela fez questão de me mostrar antes de me esconder no tubo, deixando-me mais desesperada que nunca.

De repente, eu estava no tubo. O tubo-mór. A mulher deve ter empurrado minha maca pra lá. Era claustrofóbico, mal iluminado, frio e assustador. Qualquer contato com o mundo exterior foi perdido.


E os barulhos começaram. Parecia que tinha uma banda de rock pesado tocando lá. Os barulhos eram constantes, periódicos, e logo começaram a formar padrões na minha cabeça. Uns pareciam exclamar "VERLMELHO! VERMELHO!", e outros "ME ERRA! ME ERRA!".

E tudo ficava cada vez mais escuro, e de repente, eu estava saltitando em um campo florido e... EI! NÃO POSSO DORMIR! Tentei me manter acordada, mas não sabia o que fazer para isso. Tudo dava sono lá, e era melhor passar por aquilo dormindo.

Pensei que estavam me empurrando mais pra dentro do tubo, mas na verdade, era só a minha perna dando uns espasmos muito doidos. Lembrei das palavras da mulher. Não se mexa.

Ok, ok. Tentei contar os segundos, mas desisti depois do 78. Não fazia ideia de quantos minutos estava lá. Podiam ter sido 20, ou 5. Nunca iria saber.

Perguntei-me se realmente existia vida lá fora, ou se tudo tinha sido apenas um sonho louco, e que a minha vida estava no tubo. Eu era uma sardinha. Nadando nos mares da minha mente.

Ou então eu estava apenas drogada. Tanto faz.
E então, eu ouvi uma voz.

Deus. Então Ele existe mesmo, e veio me buscar, como pude negar por toda a minha vida e...

-Seu exame acabou. Abra a boca para eu colocar a primeira seringa. - disse a mulher atrás de mim, eu nem sabia que a porcaria do tubo era aberto. Porque a minha cabeça estava dentro dele e...

De repente, eu estava com uma seringa na boca.

-VAI, JOSÉ! - ouvi a moça gritar, e os barulhos recomeçaram.
Senti-me como um cachorro com seu osso, mas aí pensei que ossos deviam ter um gosto muito melhor que aquele. Parecia perfume barato com esmalte. E isso não é bom, na sua boca.

Eu queria regurgitar, babar, derrubar tudo. Mas aí lembrei a mulher disse que eu só podeira sair quando o exame estivesse completo, e segurei toda a minha raiva.

Os barulhos pararam. Próxima seringa. E de novo. Última seringa. E de novo.

-Espera aí, vou ver como ficou.
Mais longos minutos de espera...

-Tremeu. Vamos fazer de novo.

Eu respirei fundo, contei de 1 a 10, e deixei a mulher colocar o tubinho de novo. O último era o maior, e doía muito, mas quem se importa? Ela? Não.

Senti que tinha tremido mais que da primeira vez, mas não disse nada. E quando ela disse que estava tudo bem, e que eu podia ia, quase sorri.

Não, eu não sou uma pessoa que não sorri, mas é que eu não sabia se já podia me mexer.
Esperei sair do tubo para isso.

A mulher me desamarrou, e eu me senti como uma mãe prestes a dar a luz. Na maca, com médicos, de bata, sabia que algo novo iria começar...

Eu iria dar a luz a mim mesma, nascer de novo. Sair do tubo e encarar a realidade.

E eu estava livre. Cambaleei para fora da maca, e andei meio grogue até meus óculos. Tentei estabilizar meus pés. A luz ainda era fraca, mas eu ia com toda a força de vontade. Senti o chão frio. Estendi meu braço. Abri a porta. Fechei os olhos.

E vi que tudo continuava a mesma coisa.
Bah.


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